Por Mariana Anconi
Não é raro receber mães migrantes no consultório com queixas relacionadas a cansaço, desânimo e, por vezes, chegam até deprimidas. Basta ouvir um pouco de suas rotinas para se revelar uma luta interna vivida por muitas mulheres. Na verdade, seria um equívoco pensarmos que essa luta é interna apenas, quando, na verdade, algo que fica de fora também opera de forma insistente, como aspectos do contexto cultural, político e social do território, seja ele estrangeiro ou não.
Somos seres de circulação, a história nos mostra os movimentos migratórios desde os primeiros povos. Ocupar espaços deveria ser um direito de todos. Porém, a realidade mostra o oposto, quando para alguns, ocupar espaços na cidade não é possível.
Sabemos que a cidade se apresenta de forma complexa e que, ora acolhe, ora repele seus habitantes. As minorias são as mais comumente afetadas e afastadas, perdem o direito à cidade. Fenômenos como a "gentrificação" (1) e a "arquitetura hostil” (2) mostram este cenário que segrega.
Com as mulheres que são mães, as dificuldades são bem complexas. Com mulheres que são mães e imigrantes essas dificuldades podem se intensificar. E, com mulheres que são mães solo e migrantes, fica claro que a cidade ainda funciona numa lógica nada feminista.
Lembro de um provérbio africano, muito conhecido, que diz: “It takes a village to raise a child”. Traduzindo, temos algo como: "É preciso uma comunidade inteira para criar uma criança.” Podemos fazer uma leitura de que o provérbio retira a responsabilidade individual e coloca uma perspectiva coletiva que envolva a comunidade, não apenas a família. Essa ideia merece desdobramentos quando a inserimos no contexto das migrações, pois, para as mães, migrar, mesmo com a família, pode se tornar uma experiência solitária e exaustiva. Por isso, os laços construídos para além do campo da família são fundamentais.
Ao levarmos em conta essa comunidade/cidade devemos ser encorajados a elaborar perguntas como: Mas que cidade é essa? Como seus espaços acolhem a maternidade/parentalidade? Há de fato acolhimento?
A autora Leslie Kern, em seu livro "Feminist City: claiming space in a Man-made world”, tem um capítulo chamado "Cidade de mães" em que explora justamente as dificuldades enfrentadas no dia a dia da cidade por muitas mães. Conforme avançamos na leitura, é possível entendermos muitos aspectos da ansiedade, angústia e frustrações de mulheres que decidem “enfrentar" uma cidade que não as quer circulando nos espaços.
Em uma rápida pesquisa que realizei em uma rede social sobre as dificuldades que as mães de crianças pequenas encontram ao circularem na cidade, obtive respostas que confirmam o que pesquisadoras como Leslie Kern já vem estudando sobre a maternidade e seu não-lugar na cidade. Pude categorizar as respostas em pelo menos quatro pontos:
- Falta de estrutura na cidade para caminhar com carrinhos, por exemplo;
- Medos em relação ao julgamento de outros sobre como se lida/educa com a criança no espaço público;
- Falta de locais públicos para crianças (a maioria são espaços pagos);
- Medo em relação à falta de segurança em locais públicos.
Nessa pequena lista, notamos a repetição de medos e faltas. Sabemos que algumas das dimensões do medo e das angústias podem ser trabalhadas em um nível particular a cada sujeito, por exemplo em uma análise. Falar do que está difícil na maternidade produz novos caminhos possíveis para atravessar as dificuldades. Outro ponto que muitas mulheres se dão conta é que essa travessia não precisa ser solitária. Pontos de apoio como bibliotecas públicas, brinquedotecas e parques públicossão lugares potentes no e para o laço-social.
Além disso, devemos estar advertidos de que há um resto dessa equação relativo às políticas públicas em que as mudanças devem ocorrer a nível coletivo. Estar atento a isso é um jeito de levar em conta uma topologia do sujeito que inclui o social e o coletivo, que difere de uma visão do indivíduo que sofre desconectado do seu tempo e espaço. Também sofremos coletivamente.
De volta ao consultório, as queixas que surgem dizem algo muito particular a cada um, mas ao mesmo tempo, estas mesmas queixas estão inseridas em um contexto que dão notícias sobre o lugar da maternidade na cidade. O espaço geográfico, a malha urbana, se torna elemento fundamental como facilitador para a construção de uma rede de apoio, principalmente em território estrangeiro.
Portanto, apesar de todas as dificuldades de se estar na cidade, esse lugar deve ser reivindicado por todos, pois só assim é possível construir uma rede de apoio que possibilite uma maternidade para além dos papéis rígidos de gênero esperados em algumas culturas. Se esta relação com a cidade/comunidade for marcada por muitos obstáculos à produção de laços, a maternidade na migração pode ser muito mais difícil.
(1) gentrificação: processo de transformação de centros urbanos através da mudança dos grupos sociais ali existentes, onde sai a comunidade de baixa renda e entram moradores das camadas mais ricas.
(2) arquitetura hostil: Também conhecida como arquitetura defensiva ou design urbano defensivo, o termo arquitetura defensiva é comumente associado a "pontas de ferro anti-desabrigados"[2] - peças pontiagudas instaladas em superfícies planas para torná-las espaços difíceis ou desconfortáveis de dormir.
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Mariana Anconi é psicanalista em Nova York (EUA). Mestranda em Mental Health Counseling (Manhattan College). Mestre em Psicologia (Universidade de São Paulo/USP). Co-organizadora do livro Psicanálise Afora: Percurso e clínica de brasileiros no estrangeiro (Ed. Blucher).
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